sábado, 31 de março de 2012

Here we go again.

Ontem, na cama, prestes a cobrir-me com o edredon, porta do quarto aberta, luzes prestes a deixarem-me na escuridão na casa, senti a nuvem negra, estilo vapor negro, a entrar no quarto. Mesmo antes de apagar a luz da cabeceira senti-a em forma de cabeça a segredar-me ao ouvido. Não entendi o que disse. Mas soube o que tinha de lhe dizer: 'faz favor de ir embora, não és bem-vinda, xô!'

Apaguei a luz e continuei a senti-la. Nisto vem um barulho da sala. Pensei que o mac tinha caído ao chão. Levantei-me e fui ver o que se passara. Não tinha sido o mac. Foi um pacote de leite, vazio, que estava em cima da bancada da cozinha que caíra ao chão. Peguei nele e recoloquei-o na bancada.

Regressei ao quarto. Fechei a porta. Deitei-me, apaguei a luz. E o vapor negro entrou-me pela nuca e eu sabia que o faria. Defendi-me com o 'Raku' que o D. me ensinou. Mas fui sentindo a cabeça a ficar cada vez mais pesada. Até que adormeci.

Tive um pesadelo: sonhei que a encenação que estava a fazer era impossível de realizar: era debaixo de água e usava um submarino. Não conseguia mobilizar ninguém a trabalhar e todos estavam passivos e contrariados. Senti o falhanço total, que não iria conseguir estrear. E uma imensa e terrível solidão, impotente.

Daqui a uma semana começo ensaios duma encenação que farei. Até agora tudo corre maravilhosamente, na fase preparatória. Mas o medo reinstalou-se, como a nuvem negra. Há cinco anos que não faço nenhum trabalho de encenação.

Ontem de tarde, enquanto reunia com o compositor do espetáculo (ainda não contratado..) - reunião que correu maravilhosamente - em vez de dizer 'fui convidado', saiu-me 'fui condenado'.

No texto para divulgação que escrevi, falei extensivamente da oportunidade do mistério.. O Mistério, cuja mera presença, a muitos invisivel de início, obriga as personagens a lidar com os seus medos, com as suas sombras. A resistência à transformação, o medo da mudança, do sair da normalidade..

Estou diante da oportunidade: de revisitar as sombras que encerro em mim, os medos antigos, por resolver. Eu sou uma personagem da peça que vou encenar..

Como todos dizemos com leveza: há que aproveitar as oportunidades e não deixá-las fugir ou perder. Eis a minha oportunidade. Vou matá-la, como fazem as personagens na  peça? Ou abraçá-la e arriscar ser algo novo?

A vida está comigo, sinto-o.

Here we go again.

(agora, que releio este texto, lembrei-me que a peça começa com um copo de leite derramado... e foi o pacote de leite que caiu ao chão, sozinho, ontem à noite...)

terça-feira, 27 de março de 2012

Teatro?..

Hoje é o dia mundial dele. Trabalho nele quase todos os dias. Hoje, muitos o celebram. E eu dei por mim vazio na vontade de o celebrar. Deu-me o que pensar.

Que sinto eu pelo Teatro? E não é que não sei!

Gosto das palavras dele. Gosto da luz nele, dos corpos, dos jogos, dos símbolos, dos sons, da música, das metáforas.. Gosto da imersão no paralelo da realidade que proporciona.

Não o gosto panfletário, impositivo, revolucionário.

Gosto da forma como organiza o espaço: palco, plateia; da quarta parede, outro lado do espelho.

Gosto da convenção a que nos obriga, tácita. Gosto que a dite, clara.

Gosto quando é claro, preciso, literal e depois nos apanha desprevenidos nas curvas de poesia cénica.

E o engraçado é que estes 'gostos' cabem no teatro que gosto e no que não gosto.

Até aos 26 anos era um deslumbrado pelo teatro. Depois fui secando o deslumbre, à medida que aprofundava o métier.

Hoje é o que faço. Mais pelo teatro do outros que pelo meu.

Experimentei algumas vezes o meu teatro e abandonei-o cinco anos.

Este ano regresso a ele. (Pre)Sinto-o mais definido. Ainda não sei.

Mas o meu teatro é o da minha cabeça. Sei muito pouco de teatro, portanto.

Não sinto vontade de celebrar este dia.

E amanhã continuarei a cumpri-lo.

domingo, 25 de março de 2012

Dos tempos que correm.

Quem mais anda a sentir downloads no seu corpo? Downloads literais, como os que fazem aos computadores. Informação nova, complementar à existente. Updates de informação nas células, nos tecidos, no corpo, caramba! Com o cansaço que se lhes segue...

Não me impedem a produtividade.. quer dizer, atrapalham imenso, que só sinto a energia a esvair-se de mim no arrastar-me por entre as horas. Mas não deixo de fazer o que era suposto. Até dá tempo para umas sestas imperativas. É que se não descanso parece que acabarei por adormecer em qualquer esquina de rua por onde esteja a passar, como aquela vontade repentina de ir à casa de banho que nos obriga a entrar no primeiro café que se vê... Assim corro para o quarto, corro as persianas, acendo duas velas e caio na cama, a dormir.

Na realidade só fiz isto duas vezes. Mas apeteceu-me fazer muitas mais.

Os papos no olhos são gritantes. E claro, é inevitável pensar em ir ao médico. Já fui a uma osteopata, com quem me dei muito bem e tenciono voltar mais vezes. A pessoa certa no sítio certo. Quantas vezes o desejei, sem conseguir? Pois agora está fácil!

O tempo está apressado sobre si mesmo? Estaremos em fast-forward? Ou será a sensação de download a provocá-la? Que isto do tempo não é de se fiar...

O tempo.. se calhar são tempos do tempo. Tempos que correm no tempo que é. Seremos nós, feitos tempo, a correr no tempo?

Correr sim, mas não há propriamente pressa.. O que é estranho. Não é pressa dentro do tempo que corre.  É o próprio tempo que mudou, parecendo correr, mas só por comparação ao tempo antigo. O tempo novo é calmo, sem pressa. Mas é novo, com um novo tempo. Enquanto nos ajustamos, o tempo parece estar a correr, mas está no tempo certo do seu ser. Nós é que ainda não... por enquanto.... Como quando estamos prestes a pisar uma escada rolante, naquele momento em que saímos do tempo do nosso andar para o tempo da escada rolante...

Tempo paralelos, em existências paralelas, que se tocam. Nesse ato de contato estamos nós? Nesse tempo de dois tempos?

Se sim, não admira então a canseira...

terça-feira, 20 de março de 2012

Regeneração.

Há dias
rasguei indicador e dedo médio
da mão direita
na ombreira da porta
por ter lhe calculado mal a largura
enquanto levava o cesto grande
com a roupa molhada
acabada de tirar da máquina de lavar
para a estender a secar.

Ia alterado da consciência. A dor recuperou-ma. Sangrei um bocadinho.

Tenho vindo a reparar na cicatrização. Diária.

O meu corpo, no início, ainda com a dor, exigiu-me atenção. Depois tornou-se silencioso.

Regenera sem me incomodar. O meu corpo trata de si sem me incomodar.

Por que raio então o incomodo tanto com o meu pensar?


Montra.

Ontem. Zona baixa da rua do Carmo, junto ao Rossio. Inicio da tarde. Conversa com ZM.  Montra de loja.

A perceção, pela periferia do meu lado esquerdo, tomou-a por montra de antiquário com a figura de Cristo, em tamanho natural, exposta. A figura, corpo de Jesus, icónico, cabelos longos. Uma sensação de impactação meio assustada fez-se sentir no meus corpo,  mas dei pouca importância à coisa, que parecia normal. Ainda assim, foi inevitável o olhar melhor, que o arrepio falou mais alto.

De frente, com atenção consciente: sombra duma trave (que lembrava cabelo comprido), na cabeça do manequim, cinzento escuro, de loja de roupa, com uma caveira na tshirt.

A Sombra a fazer-me ver na sombra...

sexta-feira, 16 de março de 2012

Esquematizador de emoções.

Sempre me tive como hiper-racional.

Uma vez, em Frankfurt, fui a uma terapeuta alternativa. Uma senhora magra. Alemã, muito para além da nacionalidade. Tem uma casa linda, divisões grandes, branca, espaçosa. Num dos quartos faz a sua função terapêutica. Uma marquesa no centro do quarto, uma secretária a um canto.

Fui lá porque estava frágil. Queria saber mais de mim, das maleitas da Sombra. Acreditava ir aberto, disponível, frágil é a palavra. Disposto a ouvir da generosidade dum outro a quem decidi dar-me. E julgava-me aberto para receber.

Ela fez o seu ritual.

Lembro-me que a páginas tantas as suas mãos começaram a passear pelo ar que rodeava a minha cabeça, em gestos largos, distanciados, sem lhe tocar. Gostava daquilo. Até ela proferir, rispidamente: 'a sua cabeça é enorme'. Senti culpa.

No final da sessão levei um raspanete, em inglês sotaqueado de radioatividade germânica: sou muito mental, a minha cabeça esmaga o meu ser com o pensamento. Fui sentenciado e condenado. Nem me lembro se algum conselho terapêutico surgiu daquilo. Mas lembro-me muito bem do que senti a seguir. Bom.. não logo a seguir.

Como sou muito submisso ao saber dos outros em quem decido acreditar, ouvi-a com lealdade. E senti-me traído. Começou com uma sensação de injustiça, que acatei. E paguei a consulta. Fez-me preço de estudante mas senti que quereria ter cobrado o preço total.

Saí dali. E começou.

A raiva apoderou-se de mim. O D., com quem ia, acabou por sofrer o impacto da minha ira. Verbalizei insultos à senhora, invadido de uma energia avassaladora. Gritei pela rua fora. D. silenciou-se e deixou-me vomitar a voz. Fiquei assim todo o trajecto de volta a casa, primordialmente emocional.

Sou mental? Na realidade, sou emocional. Hiper-emocional. Sombramente emocional.

O que saiu daquela sessão, acredito hoje, foi a Sombra liberta, vingadora da prisão mental que construí, que construo.

Sou muito emocional e, por isso, muito mental. Um emocional que o não sabe ser e que encontrou no seu mental um território interessante para construir uma barragem ao emocional. Fechou a comporta. A emoção acumulou. Os territórios separados, incomunicantes. Emoção tornou-se Sombra. A comporta do pensar cede, de quando em vez à pressão constante do sentir. Não se tocam, evitam-se, fecham os olhos um ao outro. Não negoceiam, não jogam...

Agora que escrevo, faço-o porque descobri, de uma nova maneira, a possibilidade de ser um esquematizador, à la Kant. Um esquematizador não nega a emoção; não nega o pensar, tão pouco. Coloca-os frente a frente, em negociação comuniKant!  O jogo é instável. O jogo é criador. Um jogo no espaço interior.

A tendência para o dominio do mental, do esquematizar só por si, do sintetizador excessivo, mantém-se. Mas a consciência tem andado a trabalhar sobre si mesma. O meu espaço interior aumenta e percebo-o melhor.

Sinto-me ético?

Voltarei a este páteo. Até já.