segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Pequeno milagre.

Entrei no restaurante. 

Só havia uma mesa para dois, no centro da sala. Todas as outras estavam ocupadas por gente que fazia o seu almoço de feriado. Assumi o  centro da sala, indistinto no meio do todo.
Pedi o normal. Sorria, cansado da viagem a conduzir e olhando de vez em quando para o televisor obrigatório, lembrando momentos íntimos e intensos do fim de semana passado em Lisboa. 
Chega o almoço e começo a comer.
De repente, à frente do meu olhar mas atrás da minha atenção, entra um sujeito pedindo esmola. Vestia verde, uma sweat com capuz.
Fingi não o ver, mas assistia às várias negas que as pessoas lhe iam dando. Pensei que os responsáveis pelo serviço o deviam encaminhar à porta e livrar-nos do constrangimento da presença do homem. Pensava ao mesmo tempo que assim que ele chegasse perto de mim lhe negaria a esmola, e esperava que ele não se detivesse muito tempo a importunar-me o almoço.

De repente, no fundo na minha mente, oiço claramente: 'entrou a tua oportunidade'.

Foi-se aproximando de mim, gradualmente, mesa a mesa. Quando finalmente me olha, faz um gesto de que quer comer. Não me pede esmola, como esperava. Pede-me com o gesto da mão à boca. 
A minha reacção? 

'Queres uma sopa? Senta-te', e indico-lhe a cadeira à minha frente. Sinto uma vibração geral no restaurante.
O rapaz senta-se. Dou por mim a pensar: 'uma sopa? uma sopa? ofereci-lhe uma sopa e estou a comer filetes, destacando peixe da massa que o cobre, porque não quero engordar, apesar de cometer as maiores alarvidades em privado?'

Chamo o sr. A, empregado de mesa. Pergunto ao rapaz: 'queres uma francesinha?'. Ele acena que sim. 'E mais um fino sr. A'. Sr. A, sem me olhar, sorri.

O rapaz está ali, à minha frente. Sinto o embaraço da comunicação, mas caramba é uma pessoa!! Começo a falar com ele e a sensação é a de total tranquilidade. 'Um barraco muito gente' repete ele vezes em conta. Pergunto-lhe de onde é. É dificil a comunicação. Finalmente ele percebe e responde: 'Roménia'. 'Há quanto tempo estás cá?: 'um barraco muito gente'. 'Que idade tens? Quantos anos?'. O vocabulário referente ao tempo escapava-lhe por completo. 

'Como te chamas? Eu sou João'. 'Christe', respondeu. As lágrimas verteram-se-me para dentro e a voz que me avisara da oportunidade, sorri.

Continuei a tentativa de conversa, infrutífera. Só conseguiu adiantar, mostrando-me o pé descalço: 'operaçon, operaçon'. Todo o tempo o sobreolho franzido e a sonoridade chorosa, à frente dum olhar castanho cheio e redondo.
Chegou o fino e o olhar ainda mais de abriu. Gesticulou: 'para mim?'. Acenei que sim. Bebeu com contenção. 
Ainda adiantou que passa o tempo a pedir, mas que não rouba. Eu levantei ambos os meus polegares e dei-lhe um grande sorriso, que percebi estava presente e constante.
Sentia-me de vez em quando olhado pela população do restaurante que, depois duma tensão inicial, retomou a normalidade das suas refeições.
Terminei de comer, mas ainda esperava a francesinha. Paguei porque tinha que ir trabalhar e receava chegar atrasado. Percebi que o que pedira para ele somava mais que a minha própria refeição. Fiquei feliz por esse facto.
Tentei retomar a conversa mas o português do Christe tinha-se esgotado e ele entretinha-se, no seu lado, sem ocupar mais espaço que não o do seu corpo, a ver a televisão. A páginas tantas, na novela que passava, um grupo de homens empunhava umas armas. Ele, apontou para a Tv e fez o gesto do empunhar duma arma, com ar assustado. Tentei perguntar pela família, pela idade, mas não consegui fazer-me entender. Contudo, Christe, gradualmente mais tranquilo, tira finalmente o capuz e expõe a sua cabeça e cara totalmente. Eu sorri-lhe. Ele retribuiu. 

Paga a conta, considerei ir-me embora, mas senti que não podia fazê-lo sem me assegurar que a refeição lhe era entregue, e assim fiz. 
Esperei. 
Esperei. 
E a voz dentro de mim, silenciosa, fazia-me sentir o seguinte: 'sente este tempo de espera. sente-o. não te envergonhes. sente o tempo'

Nisto, uma senhora, que já eu reparara estar a levantar-se, a fechar a carteira e a despedir-se de outras pessoas noutra mesa, dirige-se a mim: 'parabéns pelo seu gesto' diz ela. E olha para o Christe. Desarmado, respondo: 'obrigado, muito obrigado'.

A minutos da hora de inicio de ensaio chega a francesinha. Olho para ele, toco-lhe no ombro e despeço-me. Agradeço ao sr. A e peço-lhe que olhe por Christe enquanto termina.

E saí do restaurante.

(há poucos dias tinha-me perguntado a mim mesmo, surpreendido por uma situação em que um homem estava estatelado no chão, mas que outras pessoas já tinham providenciado o telefonema para a ambulância, e noutra ocasião em que eu poderia ter agido para ajudar um outro ser humano, perguntara-me, dizia, quando estaria preparado para deixar o meu coração agir. 'entrou a tua oportunidade'. O meu dia seguiu como normal. Mas teve, pela primeira vez na minha vida, um momento raro, um pequeno milagre.)

4 comentários:

  1. :))) Obrigado, minha amiga! Beijos para ti também!!

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  2. Tem aqui um selo para si: http://themchart.blogspot.com/

    Beijo

    Isa

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  3. És um ser humano lindo e fantástico, João!
    Obrigada por tudo aquilo que representas para mim e para todos nós! :)
    Beijinho e abraço GIGANTES *

    Ana Regueiras

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